Peço licença a uma das maiores escritoras desse país para reproduzir um texto excelente que ela escreveu. Parabéns Thalita Rebouças!
Dizem que brasileiro não pode ver uma fila que entra, mesmo sem saber o motivo. Pode ser uma fila para ganhar guardanapos usados por subcelebridades ou para provar pastel de goiabada com quiabo, não importa.
Claro que é um exagero, uma piada. Não acredito que alguém consiga gostar de filas. Ok, confesso que quando eu tinha meus 19 anos fiquei em muitas para entrar em bares e boates e cheguei até a me divertir nelas. Qual o espanto? Eu tinha 19 anos. Mas o tempo passou e os tais 19 anos não estão mais no corpitcho dessa que vos escreve, assim como a paciência, que me abandona mais e mais a cada ano. Fila, eu prometi a mim mesma, só quando for inevitável.
Naquele longínquo tempo em que a humanidade não tinha internet, todo mundo precisava entrar em filas: no banco para pagar as contas, no supermercado para passar as compras, no cinema e no teatro para comprar os ingressos. Hoje eu faço tudo isso pelo computador, no conforto de casa. Ufa!
Se chego a um restaurante e dou de cara com uma fila, parto na hora para outro. Filas maltratam o meu bom humor. Mas algumas pessoas lidam com as filas de forma diferente. Furam. Vira e mexe a gente lê no jornal que um famoso furou a fila de um restaurante ou do embarque no aeroporto pelo simples fato de ser… famoso. Ah, faça-me o favor! Eu não entendo. Pra mim é tão incompreensível quanto uma pessoa que passeia com seu cachorro e não recolhe a caca que ele deixa pelo caminho. Mas existem outros casos de desrespeito ainda piores.
Minha cunhada outro dia foi renovar o passaporte e viu uma senhorinha, andando com dificuldade, chegar de muletas à Polícia Federal. Por conta do seu estado foi prontamente atendida. Essa história seria absolutamente normal não fosse seu fim deplorável: assim que a senhorinha saiu da Policia Federal devolveu as muletas ao marido, que esperava do lado de fora, com um pé engessado. Ela foi embora com um sorriso vitorioso no rosto. E pensar que não era exatamente uma fila. As pessoas estavam todas esperando… sentadas.
Há alguns anos eu lido de perto com filas por um outro angulo. As filas de autógrafos. Para mim, claro, essas filas são especiais, tenho muito orgulho delas. Para quem está lá elas certamente são chatas, mas formar fila é a única maneira civilizada de dar a devida atenção a um grande número de leitores. E é tão bacana saber que, mesmo sendo cansativo e maçante passar horas de pé, tanta gente se dispõe a isso com um único objetivo: falar um pouco comigo, tirar uma foto, ganhar um beijo e um autógrafo. É gratificante. Emocionante.
Mas ver a fila do lado de cá às vezes também pode ser doloroso. Como na última Bienal do Rio, em 2009, quando uma senhora se aproximou dizendo que era cardíaca recém-operada e estava muito cansada, não tinha onde sentar, e perguntou se eu não podia autografar só o exemplar de sua neta. Pedi permissão aos primeiros da fila para atendê-la e todos foram gentis e compreensivos. Quando ela me virou as costas, quatro adolescentes risonhos se aproximaram correndo e meu marido ouviu a “cardíaca” dizer pra eles:
⎯ Aprenderam? Fila é pra otário. É assim que se faz.
Fiquei pasma. E com muita raiva.
No dia seguinte foi ainda pior: uma adolescente simplesmente fingiu ser cega para não enfrentar a fila. Na hora que autografei seu livro, achei que por trás dos óculos escuros ela havia lido o que eu escrevi. “Imagina, ninguém seria capaz de fazer uma coisa dessas, é só impressão”, pensei.
Algumas horas mais tarde, já indo embora do Riocentro, vi a menina sentada num banco lendo o meu livro na maior concentração. Não resisti e me aproximei.
⎯ E aí? Tá gostando?
Ela ficou paralisada, roxa, não conseguiu emitir uma só palavra. Fiquei com tanta vergonha alheia e com um incômodo tão forte no peito que não disse mais nada, achei melhor seguir meu caminho.
No dia seguinte veio a redenção: um funcionário do estande da Rocco perguntou a uma verdadeira deficiente visual se ela gostaria de sair da fila para ser atendida com prioridade.
⎯ Não, obrigada. Eu não enxergo, mas tenho duas pernas, dois braços e muita saúde. Faço questão de ficar aqui como todo mundo e não passar a frente de ninguém. Além do mais, estou batendo papo com minhas novas amigas ⎯ respondeu ela, com um sorriso no rosto. Pena que a falsa cega não estava lá para ouvir.
No último dia da Bienal, uma cadeirante de seus 14 anos também recusou a proposta de ser atendida antes de todos com uma frase que até hoje ecoa na minha memória:
⎯ Imagina! Sou como todas as outras pessoas da fila! E ainda tenho a vantagem de estar sentada! ⎯ disse, gaiata, os olhinhos brilhando.
Filas podem revelar o verdadeiro caráter das pessoas e isso às vezes me assusta ⎯ outras vezes me encanta. Ed Motta cantou que o mundo é fabuloso, o ser humano é que não é legal. Eu, que adoro o Ed Motta mas sou fã do ser humano, prefiro acreditar que ele estava falando de uma minoria.
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